quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A Conferência de Edimburgo’2010 e novos desafios da Missão

Marcelo Barros *




Toda pessoa e comunidade envolvida no movimento ecumênico cristão sabe que 2010 marca as celebrações do 5º centenário do nascimento do reformador João Calvino e os cem anos da Conferência Missionária de Edimburgo (Escócia), considerada marco inicial do movimento ecumênico contemporâneo. Apesar de ser menos conhecida entre os católicos e também entre alguns grupos pentecostais e neopentecostais, esta conferência tem suscitado em todo o mundo um profundo interesse teológico e espiritual, não tanto simplesmente para recordar o passado e sim como oportunidade para que as Igrejas e as comunidades cristãs atualizem o seu sentido de missão, se ponham de acordo sobre os novos desafios que a missão cristã enfrenta neste início do século XXI e aceitem vencê-los na unidade ecumênica a serviço do mundo.
É compreensível que o centenário da Conferência de Edimburgo encontre menos eco na América Latina, já que foi uma reunião de missionários que atuavam em países considerados não cristãos. Como a América Latina era tida como cristianizada, já que era oficialmente católica (o que foi, por parte da Conferência um reconhecimento ecumênico de respeito com a Igreja Católica), os latino-americanos foram convidados como observadores, mas não como delegados oficiais. Apesar disso, a Conferência de Edimburgo provocou uma série de iniciativas ecumênicas, como, na América Latina, o Congresso Missionário Latinoamericano no Panamá (1916). 
Por tudo isso, para junho de 2010, o Conselho Mundial de Igrejas prepara uma nova conferência missionária em Edimburgo, na mesma sala da Igreja Unida Livre da Escócia, onde, há cem anos, aconteceu a primeira conferência missionária mundial. Nesta nova conferência de Edimburgo, as Igrejas da América Latina são convidadas a ter um papel importante. Por isso, independentemente se os nossos grupos vão participar de modo direto ou não, parece importante que aceitemos os desafios lançados por este centenário e por este evento realizado pelo Conselho Mundial de Igrejas.


Como "irmão e companheiro no testemunho do reino", convido vocês a refletirmos sobre alguns elementos propostos para esta conferência e alguns desafios que o próprio tema da missão levanta, hoje, mais ainda do que há cem anos ou em 1948, quando surgiu o Conselho Mundial.


1. Edimburgo, 1910.
Ao falar da Conferência de Edimburgo, em 1910, talvez a primeira observação a fazer é que ela não foi espontânea e nem se realizou apenas pela boa vontade dos missionários nela envolvidos. Infelizmente, mais ainda do que atualmente, naquela época, a maioria das Igrejas via outras confissões cristãs como concorrentes na tarefa de ganhar adeptos e muitas Igrejas se viam como as únicas verdadeiras.


Além disso, a Igreja Católica, através da centralização da autoridade papal e de sua rígida noção de hierarquia, mantinha, fosse como fosse, certa unidade, ao menos externa. Do mesmo modo, as Igrejas ortodoxas se mantinham como Igrejas nacionais e, com algumas exceções, como na Rússia, não participavam tanto da missão. Foram as Igrejas protestantes das várias denominações que mais sofreram os efeitos de uma diversidade maior e até de certa dispersão institucional. É compreensível, então, que tenham sido essas Igrejas as primeiras a tomar iniciativas na linha do diálogo e da unidade. Desde os tempos da reforma, principalmente no seio evangélico, surgiram líderes e místicos/as que trabalharam pela unidade entre as Igrejas. No século XIX, tinham sido fundadas várias associações intereclesiais como a Associação Cristã de Jovens (1844), a Aliança Evangélica (1846), a Federação Mundial de Estudos Cristãos (1895) e outros grupos, sempre no meio das Igrejas protestantes. Entretanto, não se pensaria em fazer uma conferência mundial de missionários de várias Igrejas e justamente sobre uma missão comum. A missão era talvez o ponto mais delicado nas relações entre as Igrejas. Conta a tradição que o assunto foi provocado por comunidades e grupos dos asiáticos que estavam sendo "objeto" das missões protestantes. Há quem conte que houve comunidades de missão no qual os evangelizandos convocaram pastores de denominações diferentes atuantes no mesmo povo e lhes disseram: "Vocês pregam caminhos diferentes da mesma religião. Se não se puserem de acordo, não aceitaremos mais que abram missões junto ao nosso povo". Foi porque os missionários de Igrejas diferentes se sentiram impedidos de continuar a missão divididos que, depois de muitos anos de tentativa de diálogo por parte de alguns, aceitaram se encontrar e colocar em comum os problemas e as perspectivas da missão comum[1]. Como já vimos, a Igreja Católica e as Igrejas ortodoxas não participaram deste encontro. A maioria dos delegados eram europeus e com missões na Ásia e alguns na África. A conferência se reuniu em Edimburgo (junho de 1910), talvez porque na Escócia já havia a experiência de uma Igreja Unida Livre que tinha sabido superar dificuldades institucionais e unir Igrejas evangélicas diferentes. Os temas tratados foram: "evangelização, cooperação e unidade". Alguns dos líderes ecumênicos e espirituais mais importantes estiveram presentes e atuantes: o arcebispo luterano Nathan Soderblom, o bispo Charles Brent que, posteriormente, fundou o Movimento Ecumênico Fé e Política, assim como o pastor John Mott e o Lord Balfour de Burleigh, líderes que coordenaram a conferência em Edimburgo.


Apesar do clima que se respirava no mundo (quatro anos depois, explodia a chamada primeira guerra mundial) e de certo despreparo das Igrejas para trabalharem em comum um tema como é o da missão, não podemos deixar de reconhecer que esta conferência se constituiu como um evento verdadeiramente de diálogo ecumênico e de profunda espiritualidade. Em um artigo publicado no Vaticano, o cardeal Walter Kasper, presidente do Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos, recorda a afirmação do pastor John Mott que disse: "A alma de Edimburgo não apareceu tanto nos discursos, mas nos momentos de oração comum"[2]. Podemos dizer que, desde então, o coração do movimento ecumênico está nestas expressões de espiritualidade[3]. A Conferência de Edimburgo gerou o Conselho Internacional da Missão que se concretizou em 1921 e este movimento foi decisivo para a criação do Conselho Mundial de Igrejas, em 1948. Somente na 3ª Assembléia do CMI em Nova Dehli (1961), este Conselho das Missões se funde com o Conselho das Igrejas[4].


2. Edimburgo, 2010.
No dia 15 de maio de 2009, se concluiu na sede do Conselho Mundial de Igrejas em Genebra um encontro das Igrejas e movimentos cristãos sobre "o compromisso missionário futuro". Este tema geral foi repartido em nove grupos temáticos que estão aprofundando com suas Igrejas e comunidades cada tema e o apresentarão em Edimburgo, no encontro marcado para 02 a 06 de junho de 2010 nas dependências da Faculdade de Teologia da Universidade de Edimburgo.


Esta nova Conferência de Edimburgo, realizada pelo Conselho Mundial de Igrejas, não terá uma participação tão numerosa como a primeira que, há cem anos, contou com 1200 delegados, representantes das missões evangélicas, mas será mais ampla já que incluirá também representantes delegados das Igrejas ortodoxas, da Igreja Católica e de muitos grupos pentecostais e de Igrejas livres.


O tema geral escolhido para esta nova conferência que assumirá a metodologia de um fórum de discussões é significativo da sensibilidade comum às Igrejas: "Dar testemunho do Cristo, hoje". Vale a pena lembrar que a 5ª Conferência Geral do episcopado católico latino-americano também partiu desse mesmo desafio de tipo cristológico e tomou como tema central o desafio da missão, mesmo se não enfrentou vários dos desafios mais agudos e atuais deste tema.


A doutora Kristeen Kim, coordenadora desta conferência missionária pelo Conselho Mundial de Igrejas, espera que os grupos de Igrejas discutam os assuntos aos quais este tema os conduz. Ela sabe que ainda em 2010, em outubro, acontecerá na Cidade do Cabo, na África do Sul, o 3º Congresso dos grupos evangelicais Lausanne sobre a Evangelização Mundial. Este movimento, ecumênico entre grupos evangélicos, se constitui independente e separado do Conselho Mundial de Igrejas. É uma organização de grupos que se chamam "evangelicais" para expressar seu caráter espiritualista, embora se distingam dos movimentos fundamentalistas e insistam na responsabilidade social dos cristãos com relação ao mundo. É um movimento nascido na Conferência sobre Evangelização que aconteceu em Lausanne, em 1974[5]. Esta conferência é considerada por eles como um novo início do movimento missionário evangélico. Alguns chegaram a chamá-la de "Vaticano II evangélico". Ali tiveram certa liderança pastores latinoamericanos como Orlando Costa, René Padilla e Samuel Escobar. Ali, os participantes assinaram o famoso "Pacto de Lausanne", referência para o movimento que condenou a identificação ainda muito presente no Protestantismo de missão entre o Cristianismo e o estilo norte-americano de vida (american way of life). E se puseram de acordo sobre a imprescindível relação entre evangelização e responsabilidade social[6].


O que nos chama a atenção neste novo Congresso na Cidade do Cabo, África do Sul, é que, embora se faça no mesmo ano da 2ª Conferência Missionária de Edimburgo, não parece procurar um diálogo com o Conselho Mundial de Igrejas. Ao contrário, conta com a colaboração da Aliança Evangélica Mundial, grupo que se tem colocado como alternativa ao Conselho Mundial para Igrejas para grupos cristãos mais conservadores. Enquanto em Edimburgo, o CMI pensa em reunir umas 150 pessoas, esta Conferência da Cidade do Cabo reunirá mais de 4000 participantes. Podemos dizer que os motivos principais de divisão continuam sendo em relação à missão.


3. Questões evangélicas sobre a Missão
Aqui, vamos recordar alguns dos temas que têm dividido as Igrejas e grupos em torno da questão da missão. Em primeiro lugar, o próprio termo missão não é compreendido do mesmo modo. Lembremo-nos que ele não aparece na Conferência de Edimburgo em 1910. Falava-se em "evangelização". O termo era usado na Igreja Católica para indicar a implantação da fé e da Igreja em um novo território, chamado de "país de missão". Todas as religiões que se pensam como "universais" se compreendem como missionárias e querem se distinguir de religiões que são mais propriamente nacionais ou tribais.


O Conselho Mundial de Igrejas só usa o termo missão a partir da sua 4ª Assembléia Geral em Upasália (1968). Em geral, os grupos evangélicos o entendiam e muitos ainda o compreendem, hoje, no sentido de anúncio e implantação de uma nova Igreja em território no qual antes não havia Igreja.
No Cristianismo dos primeiros séculos, pouco a pouco, a Teologia da Missão se desenvolveu em torno de alguns conceitos base como o Kerigma (anúncio primeiro da fé), a Catequese (aprofundamento e explicação mais pormenorizada do Kerigma), a Liturgia (a celebração dos mistérios anunciados e iniciados na catequese e vividos na comunidade) e a Diakonia (o serviço da solidariedade uns aos outros e a todo o povo),
É claro que estes elementos sempre se interpenetraram de algum modo e, em muitos lugares, o Kerigma passou a se chamar de "evangelização". Em uma Igreja em regime de cristandade, isto é, identificada com o sistema do mundo considerado cristão, não há sentido em falar em evangelização, já que todo mundo era considerado, automaticamente evangelizado e cristão. A diferença única era entre os praticantes da fé e os não praticantes. Na Europa, como na América Latina, as Igrejas evangélicas e pentecostais, ao aparecerem nos diversos países, encontraram esta realidade de Cristandade, implantada pela Igreja Católica e reagiram a isso primeiramente denunciando a falta de evangelização dos povos e certa paganização (nome então usado) da Igreja Oficial. No Brasil, por exemplo, no mesmo ano da Conferência de Edimburgo (1910), eram fundadas as primeiras Igrejas pentecostais: no Pará, a Assembléia de Deus e em São Paulo, a Congregação Cristã do Brasil[7]. (Esta relação entre Igreja e Estado que comumente ocorria em relação à Igreja Católica como religião oficial na maioria dos países, acontecia com a Igreja Anglicana na Inglaterra e, de certa forma, com a Igreja Presbiteriana na Escócia, a Igreja Luterana na Suécia e assim por diante).


Para as Igrejas evangélicas históricas, a partir da terceira Assembléia Geral do Conselho Mundial das Igrejas (Nova Dehli, 1961) e para a Igreja Católica, a partir do Concilio Vaticano II, os anos 60, trouxeram uma renovação da compreensão de missão. Em primeiro lugar, ficou claro que a missão não é apenas uma tarefa, mas a própria natureza íntima da Igreja. Foi uma mudança na mentalidade vigente, mas também na linguagem. Por exemplo, no Vaticano, a Congregação Pontifícia encarregada da missão, fundada por Gregório XV em 1622, se chamava De propaganda Fidei - Para a propagação da Fé. Depois do Concilio, passou a se chamar de Congregação para a evangelização dos povos. Pode-se compreender este termo (evangelização dos povos) de modo ainda colonialista e conquistador - o evangelho seria algo a ser "levado" e comunicado aos povos dele ignorantes. Entretanto, o próprio fato do objeto a ser tratado ser o evangelho acarreta uma transformação diferente e nova. Tanto os documentos católicos como evangélicos daquela época acentuam que a missão é a própria vocação do Cristo e da Igreja. O Pai enviou o Filho e este envia aos discípulos e discípulas: "Assim como o Pai me enviou, eu envio a vós" ((Jo 20, 21). A missão não pertence à Igreja e sim ao Cristo. E o seu conteúdo não é uma doutrina e sim uma vida nova que consiste em saúde, paz, alegria e reconciliação plena uns com os outros, consigo mesmo e com Deus (Cf. Jo 20, 19- 23). Os evangelistas sinóticos dizem que o objeto da missão não é propriamente a religião e nem mesmo a pessoa de Jesus Cristo em si mesmo, embora ele seja aquele que nos traz o reinado divino, mas é o anúncio e testemunho concreto de que o reinado divino está chegando e começando neste mundo (Cf. entre muitas outras passagens Mt 4, 23; Mc 1, 15; Lc 11, 20, etc). Embora não se esgote apenas na realidade social e política do aqui e agora, o reinado divino se expressa em sinais desta realidade presente. E Jesus ensina seus discípulos e discípulas a orar ao Pai: "que venha o teu reino" (Mt 6, 10; Lc 11, 1- 4). No Brasil, existe um grupo religioso que ora o "Pai Nosso", mas o traduz por "Vamos nós para o teu reino". Entretanto, a tradução dos textos originais nos diz: "venha o teu reino".


As Igrejas tendem a se considerarem como sinais e instrumentos do reino. A uma compreensão da missão mais reinocêntrica, documentos eclesiásticos católicos e evangélicos tendem a insistir que não podemos separar a Igreja do reino. Frisam não apenas que a Igreja só pode existir em função do reino (o que todos nós concordamos e cremos), mas é como se, de certo modo, inversamente, fosse o reino a se colocar em função da Igreja e de seus interesses. Alguém mais crítico pode sentir isso ao ler certas passagens de alguns documentos do Vaticano e mesmo de encíclicas como a Redemptoris Missio de João Paulo II (Cf. especialmente o capítulo II e os números 17 e 18)[8]. Do lado do Conselho Mundial de Igrejas, a Assembléia de Upsália (1968) "exprimia sua convicção de que a Igreja é chamada a antecipar o reino de Deus, tornando visível desde já algo da novidade que Cristo cumprirá"[9]. Teólogos evangélicos como Geijbel defende evangelização como todo o processo que inclui "proclamação, diálogo, serviço e presença gratuita" (Geijbel, 1978, pp. 73- 82). E. Walsh insiste em que a evangelização comporta "desenvolvimento humano, libertação, ação permanente pela justiça e pela paz" (E. Walsh, 1982, p. 92)[10].


Se a maioria dos teólogos e pastores ligados a Igrejas históricas parece de acordo que há uma íntima relação entre evangelização, responsabilidade social e trabalho pela justiça, a divisão entre eles aparece quando devem tratar dos métodos e caminhos concretos a serem percorridos para isso. Em algumas dioceses católicas, mesmo bispos considerados abertos têm entrado em conflito com pastores de outras Igrejas e porque ambos querem defender o direito de sua Igreja exercer a missão como ocupação de espaço e até mesmo certa conquista (embora tática e cuidadosa) de pessoas novas para a Igreja.


Igualmente, é uma certa compreensão de missão que faz com que hierarquias eclesiásticas e mesmo teólogos e teólogas, inclusive os mais abertos, mantenham distâncias e não se comprometam com o novo processo social e político que existe em vários países do continente latino-americano como a Bolívia, o Equador e a Venezuela. Também há um profundo dissenso sobre a relação entre missão e os outros crentes e não crentes na construção de um mundo pluralista e de uma cultura trans-religiosa.


4. Deslocamentos da Missão
Há termos usados e mal usados que precisam ser resgatados: amor, paz, defesa da vida e o próprio nome divino. Martin Buber dizia: "Deus é a mais carregada de todas as palavras humanas. Nenhuma foi tão manchada, tão dilacerada. Justamente por isso eu não posso renunciar a ela. (...) Os povos, com suas facções religiosas, dilaceraram a palavra. Eles assassinaram em nome dela e morreram por ela. Ela carrega o vestígio e o sangue de todos eles. (...) Não é deixando de lado o termo Deus que nós não poderemos limpar esta palavra e todo o mistério que ela encerra. É, ao contrário, levantando-a do chão e retomando-a para a justiça"[11]. De certo modo, por motivos semelhantes, esta mesma afirmação caberia para o termo Missão. Tanto é assim que na nova Conferência de Edimburgo que se prepara para junho de 2010, um dos temas recorrentes é "arrependimento" pelos caminhos da missão associada ao colonialismo e à intolerância religiosa.
Provavelmente, o primeiro deslocamento a se fazer na perspectiva da missão é aprofundar mais o seu objetivo. Todos parecem de acordo que a missão visa testemunhar e anunciar o reinado divino, mas o que significa concretamente isso no mundo atual? Para Jesus, foi dar sinais de amor solidário para as pessoas excluídas, curar doentes e se relacionar com pessoas e grupos que a própria religião excluía para testemunhar que Deus é Amor e vem para todas as pessoas. Hoje, talvez, a missão precise ser deslocada do mundo das Igrejas para uma dimensão mais ampla de missão mundial e que concerne a toda a humanidade. Com isso, não está dito que seja proibido ou impróprio que uma Igreja pense sua missão como Igreja, mas não pode deixar de ser incluída e inserida nesta missão mais ampla para salvar o planeta e reorganizar a sociedade humana de forma mais irmanada e a partir da justiça e da paz.


Sem querer reduzir o Cristianismo ou qualquer outra religião a um humanismo insosso e meio anódino, é urgente que as religiões e o Cristianismo, em particular, se compenetrem de uma missão que é comum a todos os seres humanos e diz respeito ao modo de relação entre as pessoas e das pessoas com a natureza. Mesmo a dimensão transcendente e propriamente espiritual da fé se coloca nesta perspectiva e não é algo a mais e sim um modo de viver esta missão humana comum a todas as religiões e culturas.
Um modo privilegiado de fazer isso e que talvez seja próprio do Cristianismo é o diálogo. Em 1991, no Vaticano, o Conselho Pontifício para o Diálogo Interreligioso, (posteriormente esvaziado e de certa forma destruído pelo atual papa), junto com a Congregação para a Evangelização dos Povos, publicou um documento sobre "Diálogo e Anúncio". Ali se diz que o diálogo não é um elemento externo ao anúncio da fé, mas é uma parte inerente e essencial da missão. É mais do que uma forma, é um espírito a partir do qual se pode viver a missão e mesmo o anúncio (creio que não de uma Igreja determinada e de uma doutrina, mas do reino).


De 03 a 09 de dezembro de 2009, se realizou em Melbourne, Austrália, a 5ª Conferência Geral do Parlamento Mundial das Religiões para a Paz e contou com a participação de importantes líderes religiosos do mundo, como o Dalai Lama, o rabino chefe de Israel e muitas autoridades dos mais diversos caminhos espirituais. O tema geral deste encontro parece ter traduzido o que seria o objetivo da nossa missão comum, hoje: "Vamos fazer um mundo de diferença: escutando uns aos outros e curando a Terra".
A conferência anterior desta organização foi em Barcelona, de 07 a 13 de julho de 2004, por ocasião do Fórum Universal das Culturas. Luigi de Paoli, teólogo italiano, assim resumiu suas conclusões:
"As religiões devem tomar consciência de que a violência, a pobreza, a intolerância religiosa, as doenças, a globalização a serviço de poucos e os maus tratos infligidos à Terra constituem um deságio que precisam de uma resposta urgente. (...) Dag Hammarskjold dizia: "Se o mundo não fizer a experiência de um novo renascimento espiritual, a civilização se extinguirá".


O que salva não é a religião, mas o amor, a compaixão, a solidariedade efetiva. Um amor sem adjetivos qualificativos, como cristão, muçulmano ou budista. Um amor sem dogmas, capaz de trazer ao mundo paz, justiça, bondade e unidade. Um amor que constitua a raiz de uma Ética universal, como defendido por Hans Kung, ética que deve ser a primeira teologia.
Todas as religiões reconhecem a necessidade de abandonar o paradigma patriarcal, sexista, exclusivista e intransigente, vigentes no passado, para passar à compreensão do laço que existe entre totalidade e a santidade, entre a espiritualidade e o "serviço"; entre a divindade e a humanidade.
(...) Todas as religiões devem interiorizar e ensinar a não violência como instrumento essencial para resistir e despotencializar a violência dominante"[12].


Este caminho não se fará se a missão não se tornar mais e mais quase sinônimo de espiritualidade. Quem estuda a vida de São Francisco de Assis sabe que ele transformou o que hoje poder-se-ia chamar de "projeto de evangelização" no sentido de "levar o evangelho aos outros" em um caminho que muitos autores chamam de "evangelismo" ou "evangelicidade", não no sentido de que aqui falamos de grupos evangelicais que separam a espiritualidade do mundo, mas no sentido da exigência primeira de se viver o evangelho e de que a ação da Igreja possa ser muito mais a de se converter, ela mesma e viver a proposta do reino, do que em pedir aos outros que a vivam. Se trilharmos mais este caminho, viveremos todos o que um místico muçulmano escreveu: " Meu coração tornou-se capaz de qualquer forma. É um pasto para gazelas e um convento para cristãos. É a Caaba do peregrino, as tábuas da Torá judaica e o livro do Corão. Sigo a religião do amor-solidariedade. Qualquer caminho que tomemos, se montarmos no camelo do amor, o encontraremos. Essa é a minha fé" (Ibn ‘Arabi, sec XII[13]). Ele poderia ter dito: "esta é minha missão".


Notas:
[1] - Cf. JUAN BOSCH, Para ler a História da Igreja II, (Do século XV ao séc. XX),São Paulo, Loyola, 1981, pp. 183 ss.


[2] - CARDINAL WALTER KASPER, Chémin et Signification du Mouvement Oécumenique,Rome, Conseil Pontifical pour la Promotion de l´Unité des Chrétiens, 2008, p. 03.


[3] - Para outras informações sobre a Conferência de Edimburgo: Kenneth LATOURETTE, Ecumenical Bearing of the Missionary Movement and the International Missionary Council, in RUTH ROUSE e STEPHEN NEILL, (organizadores), A History of the Ecumenical Movement, Genève, World Council of the Churches, 1986.


[4] - Cf. FRITZ LIENHARD, vocábulo Missão/ Evangelização, in JEAN-YVES LACOSTE (organizador),


Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo, Ed. Paulinas, Loyola, 2004, pp. 1154- 1155.


[5] - Cf. COMITÊ DE LAUSANNE PARA A EVANGELIZAÇÃO MUNDIAL, "DÉCLARATION DE LAUSANNE, 1974" in Obra Coletiva, Au delà des Conféssions,Paris, 1989, pp. 81- 92.


[6] - LUIZ LONGLINI NETO, O Novo Rosto da Missão, in Viçosa, revista «Ultimatum», junho de 2002, p. 5.


[7] - Para a História das Igrejas evangélicas e pentecostais no Brasil: Antônio GOUVEIA DE MENDONÇA e Prócoro VELASQUES FILHO, Introdução ao Protestantismo no Brasil, São Paulo, Ed. Loyola, 1981.


[8] - JOÃO PAULO II, Redemptoris Missio, Encíclica sobre a validade permanente do mandato missionário, Roma, Ed. Vaticana, 1990.


[9] - Citado em FRITZ LIENHARD, vocábulo Missão, in JEAN-YVES LACOSTE, Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo, Loyola, Paulinas, 2004, pp. 1155.


[10] - Autores citados por DAVID BOSH, Missão Transformadora (Mudança de paradigmas na Teologia da Missão), São Paulo, Religión, 2002, p. 92.


[11] - MARTIN BUBER, Encontros, Fragmentos autobiográficos, Vozes, 1991, p. 49- 50.


[12] - Cf. LUIGI DE PAOLI, Il 4º Parlamento delle Religioni, artigo espalhado pela internet. 2004.


[13] - Cf. FAUSTINO TEIXEIRA, Teologia das Religiões, uma visão panorâmica, São Paulo, Paulinas, 1985, p. 203- 204.

* Monge beneditino e escritor

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